Um dos argumentos mais frequentemente usados para justificar a reforma litúrgica pós-conciliar, especialmente no que diz respeito à introdução das línguas vernáculas na liturgia, foi o de tornar a Santa Missa mais “compreensível” ao povo. Entretanto, passadas algumas décadas desde o Concílio Vaticano II, somos levados a questionar: será que o uso do vernáculo de fato aumentou a compreensão do mistério eucarístico entre os fiéis? Ou assistimos, paradoxalmente, a um declínio ainda maior na consciência do sagrado, na participação interior e na reverência?

A Missa em Latim e a Percepção de "Incompreensão"

A Missa celebrada em latim, segundo o Rito Romano tradicional — também chamado de Usus Antiquior ou Missa Tridentina — esteve vigente por séculos na Igreja Latina. O Concílio de Trento (1545-1563), especialmente através do Decreto sobre o Santíssimo Sacrifício da Missa (Sessão XXII), reafirmou a doutrina perene de que a Missa é o sacrifício verdadeiro e próprio de Cristo, renovado de forma incruenta no altar.

O uso do latim não era arbitrário. Sua escolha visava preservar o sentido de sacralidade, universalidade e continuidade da fé. O Papa Pio XII, em sua encíclica Mediator Dei (1947), advertia:

“A linguagem latina, por causa de sua dignidade, clareza e gravidade, é especialmente apropriada para exprimir as coisas divinas.” (Mediator Dei, n. 60).

Ainda que o povo não compreendesse plenamente cada palavra, a formação catequética, os sinais sagrados e a atmosfera de adoração comunicavam eficazmente o núcleo do Mistério. Como observava São Josemaría Escrivá:

“O latim é uma língua que nos une a todos os católicos do mundo, e que nos ajuda a rezar com mais respeito.” (É Cristo que passa, n. 84).

A Reforma Litúrgica e o Uso do Vernáculo

O Concílio Vaticano II, em sua Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, reconheceu o valor do latim e recomendou sua preservação:

“O uso da língua latina seja conservado nos ritos latinos” (Sacrosanctum Concilium, n. 36 §1).

Todavia, também abriu a possibilidade de introduzir a língua vernácula em partes da liturgia, sobretudo nas leituras e exortações:

“Concede-se, todavia, um espaço mais amplo ao uso da língua vernácula, principalmente nas leituras e admoestações, em algumas orações e cânticos...” (ibidem, §2).

É fundamental notar que a substituição quase total do latim pelo vernáculo e a prática generalizada da celebração versus populum não foram exigências do Concílio, mas sim aplicações posteriores muitas vezes influenciadas por correntes teológicas pastorais alheias à tradição.

Neste contexto, a Instrução Liturgiam Authenticam (2001), da Congregação para o Culto Divino, veio reafirmar a importância da fidelidade ao texto litúrgico e da sacralidade da linguagem, mesmo em vernáculo, para evitar a banalização dos mistérios sagrados:

“A linguagem litúrgica deve expressar com clareza a fé da Igreja, e não ser deformada pela cultura secularizada.” (Liturgiam Authenticam, n. 3).

O Paradoxo Atual: Missa Compreensível, Mistério Esquecido

Apesar da acessibilidade linguística, observamos hoje uma crescente incompreensão das realidades centrais da fé eucarística. Muitos fiéis desconhecem ou não creem na Presença Real de Cristo, como o demonstram diversas pesquisas sociológicas, como a do Pew Research Center (2019), segundo a qual 69% dos católicos norte-americanos acreditam que a Eucaristia é apenas um símbolo.

Essa crise de fé não pode ser desvinculada da forma como a liturgia é celebrada. O Papa São João Paulo II, em sua encíclica Ecclesia de Eucharistia (2003), advertia:

“Não podemos esquecer que a Eucaristia é, antes de tudo, um mistério de fé que deve ser celebrado com temor reverencial e profunda adoração.” (Ecclesia de Eucharistia, n. 48).

De modo semelhante, Bento XVI, ainda como Cardeal Ratzinger, em Introdução ao Espírito da Liturgia, afirmava:

“Quando a liturgia se torna espetáculo, onde se tenta 'entreter' os fiéis, perde-se sua essência e ofusca-se o Mistério de Deus.”

É justamente esse obscurecimento do sagrado que torna a Missa, apesar de compreensível do ponto de vista linguístico, espiritualmente menos acessível, menos eficaz como meio de elevação das almas a Deus.

Participação Interior vs. Compreensão Intelectual

A participatio actuosa desejada pelo Concílio não se reduz a ações externas, como responder ou cantar. Trata-se, sobretudo, de uma participação interior, consciente e espiritual. O Catecismo da Igreja Católica recorda:

“A participação na Sagrada Liturgia deve ser ‘consciente, ativa e frutuosa’” (CIC, n. 1071; cf. SC, n. 11).

Neste sentido, Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja, exortava os fiéis a assistirem à Missa com recolhimento e piedade:

“Não basta ouvir a Missa; é necessário assistir com devoção, unindo-se ao sacerdote no oferecimento do Santo Sacrifício.” (Prática do Amor a Jesus Cristo, cap. 1).

É também com esta finalidade que o Papa Bento XVI, em sua Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis (2007), propôs uma “reforma da reforma”, isto é, um resgate da sacralidade litúrgica:

“Uma autêntica participação litúrgica só é possível quando está enraizada no espírito de adoração.” (Sacramentum Caritatis, n. 65).

É uma ironia histórica que, ao tentar tornar a Missa mais “compreensível” ao povo, tenha-se frequentemente perdido a clareza espiritual e sacramental do que se celebra. A solução, portanto, não está em rejeitar o vernáculo, mas em restaurar a reverência, a formação doutrinária sólida e a consciência do sagrado.

Como afirmou o Papa Francisco:

“A liturgia não é um campo de batalha entre ideologias, mas o lugar do encontro com Cristo.” (Discurso à Congregação para o Culto Divino, 14 de fevereiro de 2019).

Para que a Missa volte a ser, em toda parte, o “cume e fonte de toda a vida cristã” (Lumen Gentium, n. 11), é necessário recuperar seu caráter de mistério sagrado, independentemente da língua em que seja celebrada.